Simone de Beauvoir: "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher"
Em 1976, numa entrevista, Beauvoir dizia que as mudanças
pelas quais lutara não se realizariam durante a sua vida. "Talvez daqui a
quatro gerações." Que importância tem hoje 'O Segundo Sexo'? Cem anos
depois do seu nascimento, a França ainda se comove com elaPublicado em 1949,
tinha Simone
de Beauvoir 41 anos, 'O Segundo Sexo' viria a ser considerado uma
marca fundamental no pensamento feminista do século XX, abrindo caminhos para a
teorização em torno das desigualdades construídas em função das diferenças
entre os sexos. Composto por dois volumes (Factos e Mitos e A experiência
vivida), o livro debate a situação da mulher, do ponto de vista biológico,
sociológico e psicanalítico, inaugurando problemáticas relativas às instâncias
de poder na sociedade contemporânea e às diferentes formas (tantas vezes conflituais)
de dominação. Reflectindo, pois, sobre as razões históricas e os mitos que
fundaram a sociedade patriarcal e a sustentam e que trataram a mulher como um
"segundo sexo", silenciando-a e relegando-a para um lugar de
subalternidade, Beauvoir irá apontar soluções que visam à igualdade entre os
seres humanos.Fonte de inspiração para autoras como Betty
Friedan, que lhe dedicou o seu já clássico 'The
Feminine Mystique' (1963), 'O Segundo Sexo' antecipa, de forma admirável, o
feminismo da chamada "segunda vaga", que surgiria quase três décadas
depois, com o movimento de libertação das mulheres a desenvolver-se, no final
dos anos 60, a par de outros movimentos sociais de contestação, de carácter
transnacional - as lutas pelos direitos cívicos, os movimentos estudantis, as
preocupações ecossistémicas, a reivindicação, por parte das minorias, de uma
voz e de um lugar que fosse seu. "A disputa durará enquanto os homens e as
mulheres não se reconhecerem como semelhantes, isto é, enquanto se perpetuar a
feminilidade como tal", escrevia Beauvoir. Entendendo
"feminilidade" como uma construção, a teorização de Beauvoir é levada
a cabo a partir da dupla edificação deste conceito dentro do paradigma
patriarcal - o "feminino" como essência e o "feminino" como
código de regras comportamentais.Sexo e géneroAntecipando os movimentos
feministas, Beauvoir antecipa ainda aquela que viria a ser uma das pedras de
toque teóricas para os estudos feministas de raiz anglo-americana: a
apropriação da palavra "género", para significar a construção social
de uma diferença orientada em função da biologia, por oposição a
"sexo", que designaria somente a componente biológica. É a partir da
frase já célebre de O Segundo Sexo "On ne naît pas femme, on le
devient" ("Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres"), que
teóricas feministas como Joan Scott irão, nos anos 80, reflectir sobre o
estabelecimento da diferença entre "sexo" e género ("diferença
sexual socialmente construída"), desafiando e questionando a noção de que
a biologia é determinante para os papéis atribuídos às mulheres e de que existe
uma "essência feminina". Assim, dentro de um quadro conceptual
feminista, a questão proposta por Beauvoir é crucial, visto denunciar o
carácter eminentemente artificial da categoria "mulher": um ser
humano do sexo feminino "não nasce mulher", antes "se torna
mulher", através da aprendizagem e repetição de gestos, posturas e
expressões que lhe são transmitidos ao longo da vida. Só por isto se teria O
Segundo Sexo mantido actual. Surpreendente é que novas teorias, como a teoria
queer, surgida há pouco mais de uma década, emergente dos estudos feministas e
devedora dos estudos gay e lésbicos, revisitem Beauvoir e a sua célebre frase.
Tendo como um dos seus nomes mais marcantes Judith Butler, a teoria queer
assume-se como emancipatória, ao defender que as identidades são criadas pela
repetição de certos actos culturalmente inscritos no corpo. Reagindo às
políticas de identidade, que haviam sido, nas décadas de 70 e 80, fulcrais para
o sucesso das políticas de inclusão social, Judith Butler, e o seus Gender
Trouble (1990) e Undoing Gender (2004), partem desse "On ne naît pas
femme, on le devient", de Beauvoir, para acentuar a ideia de que a
identidade é fluida e instável e de que "género" é um conjunto de
actos performativos. Neste caso, em lugar de se ler "Não nascemos
mulheres, tornamo-nos mulheres", poderia ler-se "Ninguém nasce
mulher, torna-se mulher", ou seja, todos e todas nós aprendemos a
construir identidades a partir de modelos aparentemente matriciais, que se
foram depois cristalizando, mas que são, eles próprios, simulacros. A ênfase é,
pois, colocada na transformação - que, podendo ser limitação, pode igualmente
expandir-se para gesto de liberdade.Em 1976, numa entrevista, Simone de
Beauvoir dizia que as mudanças pelas quais lutara não se realizariam durante a
sua vida. "Talvez daqui a quatro gerações", acrescentava. Para esta
jovem teoria, a lição de Beauvoir coloca-se também num "devir", esse
devenir de que, há quase 50 anos, ela falava. Jovem, outra vez, neste ano que
celebra o centenário do seu nascimento.
Ana Luísa AmaralEscritora, e professora de Literatura
Anglo-Americana e de Estudos Feministas na Faculdade de Letras do Porto
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